Em meio à festa que vive a bolsa de São Paulo, ficam em evidência vícios de governança corporativa nas empresas brasileiras. As autoridades procuram solucioná-los para evitar impacto nos investidores
Verónica Goyzueta, de São Paulo para Revista América Economia, março de 2011 (P. 66 a 70)
Quem quer dinheiro? ”Esse é o bordão do apresentador mais popular da televisão brasileira para sua plateia, formada por gente humilde, que se acotovela e se empurra para agarrar no ar um dos inúmeros aviõezinhos de dinheiro disparados por ele. Silvio Santos, multimilionário dono de um grupo de empresas que inclui o SBT, a terceira maior rede de televisão do país, viu sua frase mais famosa se transformar.
Em novembro do ano passado, anunciou que havia sido vítima de uma gigantesca fraude contábil em uma de suas empresas, o Banco PanAmericano: um rombo impressionante, de US$ 2,6 bilhões. “Se o Fundo de Garantia de Crédito não tivesse liberado recursos para cobrir um déficit desse tamanho, o Banco Central teria decretado falência, com consequências imprevisíveis para o sistema financeiro”, afirma Marcelo Lico, sócio da Macro Auditoria e Consultoria.
O caso PanAmericano pisou em vários pilares de governança corporativa, como transparência, equidade, prestação de contas e respeito às leis. E deixou os nervos expostos no sistema da bolsa brasileira. A habilidade do velho Silvio e a ousadia do dono do BTG Pactual, o jovem André Esteves, que acabou comprando o PanAmericano, evitaram uma calamidade em um mercado que ferve de otimismo.
A auditoria realizada na empresa teve resultados assustadores: os sistemas contábeis e de controle estavam corrompidos e havia registros de carteiras de crédito duplicados, bem como operações com derivativos declaradas como benefícios. Os salários e os bônus da antiga diretoria, milionários, também não eram declarados. “Os sistemas de governança corporativa eram precários”, afirmou Celso Antunes da Costa, novo diretor-chefe do banco, em fevereiro passado, ao apresentar os resultados da auditoria. “Era uma operação mal administrada, que manipulava números para cobrir prejuízos.”
O problema poderia ser maior. No meio do Carnaval que virou investir na bolsa de São Paulo nos últimos dois anos, não são poucos os que acreditam que muitos dos pecados do PanAmericano são praticados por várias das grandes emissoras da BM&FBovespa. “Todas as bolsas correm risco de bolha”, afirma Kevin McDonald, crítico do Brasil desde que visitou o país, em 1983, como consultor, e que, atualmente, é sócio do McDonald Lehner, um banco de investimentos norte-americano especializado em fusões e aquisições latino-americanas.
O especialista vê pecados que poderiam ser evitados. Exemplo? Empresas controladas por pequenos grupos de acionistas, que, por sua vez, atuam por meio de executivos com muito poder e que não dão aos minoritários a oportunidade de se envolver na governança corporativa. McDonald também enxerga conflitos em empresas que repetem executivos na diretoria e em seus conselhos administrativos; na resistência em publicar salários individualmente; na falta de informações amplas sobre o desempenho dos conselheiros; e em cláusulas rígidas que restringem os negócios. “Quanto mais informações estiverem disponíveis, mais ficam evidentes os excessos que os acionistas querem conhecer”, ele afirma, ao recomendar que o Brasil se inspire na Índia, país com o qual concorre por investidores estrangeiros.
No país asiático, as empresas informam a frequência de conselheiros nas reuniões, a quantidade de conselhos dos quais participam e presidem, e os salários individuais, incluindo bonificações. “A única grande empresa brasileira na qual encontrei essas informações [salários individuais] é a Usiminas”, afirma o especialista, que também elogia a transparência de corporações como Gafisa, Brasil Foods (BRF), Totvs e CCR, embora prefira não citar as menos transparentes.
A preocupação com a bolsa brasileira não é inócua. A BM&FBovespa registrou em 2010 um novo recorde de capitalização anual, ultrapassando a marca de US$ 1,5 bilhão de dólares, 15,2 vezes mais que em 1994 (ano em que o Brasil venceu a inflação). Não obstante, os estrangeiros representam um terço dos negócios e, quando surgem perigos, são os primeiros a fugir.
Além disso, trata-se de uma bolsa muito concentrada, na qual 56,4% de seu valor (US$ 848 bilhões) corresponde a dez empresas, incluindo Banco do Brasil, Bradesco, Itaú e Santander, que respondem por 35% dos mil processos abertos entre 2008 e 2009 pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
Fila no confessionário
No Brasil não se publicam os salários individuais de diretores e conselheiros administrativos e fiscais, apesar de essa ser uma prática normal em grande parte dos países com mercados acionários desenvolvidos, especialmente depois dos escândalos e das bancarrotas corporativas dos últimos dois anos.
Quando a CVM propôs avançar nesse assunto, em dezembro de 2009, a oposição dos emissores foi tamanha que ela acabou aceitando difundir os salários em blocos, como soma dos salários do conjunto de executivos e diretores. Mas, mesmo assim, algumas empresas se esquivam. Vale, Ambev e Santander combateram a exigência judicialmente.
Em julho, a CVM informou que 20% das empresas, entre elas estrelas da bolsa, como Gerdau, Brasil Telecom e Embraer, usaram recursos contra ela. Um estudo recente do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) aponta que 59% das empresas entregaram a declaração completa, 9% ofereceram dados incompletos, 11% apresentaram recursos para não publicar e 21% sequer deram explicações.
Antonio Castro, presidente da Associação Brasileira de Empresas Abertas (Abrasca), vê nessa polêmica um problema cultural. “Os executivos brasileiros são muito discretos em sua vida pessoal”, afirma, estimando que exista uma preocupação com a segurança e com uma corrida por aumentos. Henrique Campos, sócio-diretor da BDO Auditoria, concorda, mas também acredita que o complexo sistema de tributação influencie.
Não é um assunto menor para o acionista minoritário. Estudos da Associação de Consultores em Recrutamento de Executivos (Aesc, na sigla em inglês) e da recrutadora brasileira Dasein Executive Search coincidem em apontar que os salários dos executivos brasileiros estão entre os maiores do mundo. “A divulgação garante transparência, permite comparações e possibilita que os investidores identifiquem possíveis distorções nos pagamentos”, afirma Lico, da Macro Auditoria. “Além disso, a remuneração da diretoria deve estar sempre vinculada à geração de resultados.”
Para Luiz Fernando Dalla Martha, pesquisador do IBGC, o argumento da insegurança é questionável, pois Turquia e África do Sul, que implementaram normas de transparência de salários, não registraram problemas. “Um executivo de uma grande empresa geralmente tem dinheiro e, só por isso, já é alvo, independentemente de quanto ganha”, afirma.
Pecados no Board
Dalla Martha, do IBGC, percebe um movimento importante em busca de mais transparência e responsabilidade. Mas algumas empresas dão mais prioridade à forma do que à essência da informação. Sem citar nomes, ele recorda os casos de balanços que não mostravam sua exposição em derivativos financeiros. Foi o que ocorreu com a Sadia e a Aracruz Celulose, que perderam centenas de milhões após uma desvalorização em 2008.
Algo semelhante acontece com as dívidas fiscais, um risco que passa despercebido para o acionista minoritário. Um estudo apresentado no final de 2009 pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT) e pelo Instituto de Governança Tributária (IGTAX) mostra que 29% das empresas listadas têm dívidas tributárias ativas, um risco potencial que os investidores desconhecem. São as dívidas fiscais que existem depois de vencidos todos os prazos legais.
Segundo o estudo, o índice aceitável deveria ser de 10%. “Apesar da complexidade do sistema fiscal brasileiro e da alta carga tributária, essas dívidas são um perigo latente para acionistas, pois impedem que a empresa participe de licitações, obtenha financiamentos, realize fusões e aquisições ou divida lucros e dividendos”, afirma Gilberto Luiz do Amaral, presidente do IBTP.
Possivelmente, muitos desses pecados seriam de fácil perdão se as empresas brasileiras tivessem uma separação clara entre as funções da alta gerência (ou equipe executiva) e dos conselhos de administração. “O papel do conselho de administração é determinar estratégias, estabelecer regras e fiscalizar a gerência. O papel da gerência é seguir as regras determinadas pelo conselho”, afirma Lico, da Macro Auditoria.
A ideia dessa separação é que os acionistas minoritários estejam seguros de que seus representantes no conselho estão defendendo seus interesses. O problema é que não são poucos os conselhos que têm assentos disponíveis para muitos dos executivos da empresa, ou até que são presididos por seu principal executivo. Uma exceção é a enorme mineradora Vale. Castro, da Abrasca, acredita que há situações em que faz sentido que o principal executivo faça parte do conselho, como é o caso de Jack Welch na General Electric (GE). Mas, em algumas empresas da Bovespa, a taxa de participação dos diretores nas juntas tem caído. É o caso da própria Vale: a taxa anual de participação de seus diretores titulares passou de 70% em 2007 para 57% em 2010, conta que exclui os suplentes. A norma em países desenvolvidos é de 75%.
Há outras empresas nas quais seus diretores independentes não participam de suas juntas durante anos. É o caso de Ricardo Espírito Santo Silva, um dos mais altos executivos do grupo financeiro português Banco Espírito Santo, que figura como diretor independente do Bradesco desde 2003. Mas sua presença não foi registrada nas minutas de nenhuma das atas do Bradesco durante os últimos oito anos.
Um banqueiro de investimentos, que prefere não revelar sua identidade, recorda que houve situações até em que o presidente da diretoria de uma empresa votou a favor de comprar outra, na qual tinha participação acionária, sem se abster. “Isso foi no final de 2009, quando a Gafisa adquiriu a totalidade de sua subsidiária Tenda”, afirma o banqueiro.
O problema é que o então presidente da diretoria da Gafisa, o norte-americano Gary Garrabrant, era também o fundador e CEO da Equity International, empresa que, por sua vez, tinha participação na Tenda. “A minuta da junta da Gafisa na qual se aprovou a totalidade da compra da Tenda registra uma votação unânime, sem que ninguém se abstivesse.”
Desde então, a Gafisa melhorou muito sua governança corporativa, mas os banqueiros afirmam que práticas como essas continuam acontecendo. Também exigem cuidado as estatais com andadas por políticos. É o caso da Eletrobras, maior empresa elétrica do Brasil, que tem uma propriedade mista, na qual convivem acionistas minoritários e o Estado.
Não obstante, os acionistas da empresa têm de conviver com outro dono que não figura nas listas de acionistas: o PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), que transformou a maior empresa elétrica brasileira em seu feudo, conseguindo colocar em sua lista gerencial militantes, em vez de técnicos. O impacto mais claro disso foi nos resultados da geradora Eletrobras Furnas, maior subsidiária da Eletrobas, que gera cerca de 10% da energia do país.
Embora tenha conseguido lucros de US$ 270 milhões em 2008, já acumula dois anos de grandes prejuízos. Segundo um grupo de funcionários que pediu ajuda ao governo, a gestão se caracterizava pela “falta de respeito às leis, aos estatutos e aos regulamentos que regem o mundo corporativo”. O governo atendeu às queixas e nomeou como presidente o técnico Flavio Decat.
Indulgências
As autoridades brasileiras sabem que há muito a melhorar em termos de governança corporativa. Não é por acaso que, em fevereiro, o Brasil registrou a primeira condenação penal de sua história por informações privilegiadas (insider information), contra dois ex-executivos da Sadia que lucraram com a oferta da Sadia pela Perdigão em 2006, um negócio que nunca se concretizou.
O trabalho da CVM, e de sua presidente desde 2007, Maria Helena Santana, tem sido elogiado por enfrentar empresas com processos e multas e por apoiar a autorregulamentação com ajuda de entidades do mercado, como IBGC, Abrasca e Ibracon. Sua política tem sido a de castigar para educar, mas, principalmente, prevenir.
Apesar do crescimento do mercado, o número de consultas, queixas e denúncias recebidas pela CVM tem diminuído consideravelmente, tendo passado de 196.000 em 2005 para 48.000 em 2009. Por e-mail, a Superintendência de Relações com Empresas da CVM informou que tem desenvolvido regras para melhorar a qualidade das informações. Sobre casos de empresas que não convocam ou não informam suas assembleias em prazos legais, a instituição declara que as notificou sobre a falta de informações e documentos.
São bons sinais. Castro, da Abrasca, enumera os principais avanços da última década: novos marcos regulatórios; a adoção de normas de governança corporativa em empresas abertas; a criação do Novo Mercado (índice acionário especial para empresas que certificam ter alto nível de governança corporativa, que já listou mais de cem empresas em dez anos); e a implementação do padrão internacional de contabilidade IFRS (International Financial Reporting Standards), obrigatório a partir deste ano.
“O desafio é aperfeiçoar esses instrumentos”, afirma Campos, da BDO. “Com o IFRS, aumentam o número de informações, a transparência das notas explicativas na peça contábil e, sobretudo, o poder de comparação de uma empresa brasileira com qualquer outra do mundo.”
São desafios fundamentais para aumentar as empresas listadas – 556 atualmente. Países com o mesmo nível de capitalização têm quase o triplo de emissores em comparação com o Brasil. Entre os chamados BRIC, com exceção da Rússia, com 216 empresas, a China tem mais de 2.000, e a Índia, mais de 1.500.
A BM&FBovespa quer 200 novas empresas e chegar a 5 milhões de investidores individuais em dois anos e, para isso, tem incluído campanhas de promoção nas praias brasileiras comunicando as benesses do mercado de ações. A expectativa é tamanha que novos concorrentes começam a se apresentar. A norte-americana Bats (Better Alternative Trading System) anunciou, em fevereiro, sua chegada ao Brasil.
Contudo, para que o carnaval da bolsa continue, as empresas brasileiras devem levar mais a sério o desafio da governança corporativa. Do contrário, as promessas de investimento e enriquecimento terão a solidez de um avião de dinheiro lançado por Silvio Santos: “Quem quer dinheiro?”